O pobre homem, às portas da morte, estava irredutível. Queria, nem mais nem menos, naturalizar-se continental. Por mais que tentassem fazê-lo mudar de ideias, mais ele persistia no intento.
— Mas pai, isso não faz sentido — diziam-lhe os filhos quase em coro —. Tal coisa não está prevista na lei. Ser continental ou madeirense nem sequer consta nos registos do nascimento. Isso nem se sabe bem o que quer dizer. Será que uma criança nascida na Madeira, só porque a mãe estava cá no dia do nascimento é madeirense? Será que, ao contrário, uma criança filha de pais madeirenses ao nascer no Continente deixa de ser madeirense? Será que uma criança filha de pais continentais, nascida no Continente, mas que vive na Madeira desde a infância não é madeirense?
— Já vos disse — insistia o velho irritado —, quero um papel oficial que declare, preto no branco, que daqui para diante eu sou continental.
Não havia nada a fazer. Desesperados, os filhos contactaram um amigo que trabalhava no Registo Civil, para ver se era possível fazer qualquer coisa. Não foi fácil mas, ao fim de uma boa mariscada na Marina do Funchal, o homem acabou por ceder. Mas com o compromisso solene de o documento lhe ser devolvido imediatamente após da morte do pai.
— Pronto pai, aqui está uma certidão do Registo Civil. A partir de agora o pai deixa de ser madeirense e passa a ser continental.
O velho, comovido até às lágrimas, pediu os óculos para examinar o papel. Não havia dúvidas era um papel oficial, com selo branco e tudo.
— Obrigado, meus filhos. Não queria morrer sem fazer isto.
— Mas, já agora, gostaríamos de saber por que razão o pai tomou esta decisão. O senhor sempre detestou os continentais, chamava-lhes nomes, declarava-os culpados de todas as desgraças que por cá aconteciam…
— Ora aí está, detesto-os de morte. E assim, quando eu morrer, sempre vai haver um continental a menos…
[1] Inspirada numa velha anedota belga